À
entrada do avião, já se sente um ambiente diferente. Cada uma das três cadeiras
de cada lado do avião tem uma cor diferente: verde, amarelo e azul. Parece que
estamos dentro do arco-íris. Para trás fica o ambiente formal do aeroporto
russo. Aqui, toda a gente conversa, o staff
é simpático. Há sorrisos por todo o lado. Mas a língua é misteriosa. Não soa a
nada ouvido antes. A escrita é peculiar. Parece tailandês, mas não é. Como
chinês parece japonês. O melhor é ficar calado e não fazer comparações sem
sentido.
À
chegada está um calor esbaforido. Não se consegue respirar. Os oficiais de
fronteira, quase todas mulheres, são bonitas e sorridentes. O aeroporto tem um
ambiente pristino. Passadas as formalidaddes de entrada, chegamos a um parque
de estacionamento exterior com uma paragem de táxis bastante concorrida. Num
ápice, dois invidíduos pegam-me na mala e numa conversa rápida em inglês
macarrónico perguntam-me para onde vou. Dou o nome do hotel e eles traduzem a
conversa para o condutor, um terceiro indivíduo que já estava dentro do táxi, e
empurram-me para dentro do carro. Serviço eficiente, rápido e fulminante.
Pareceu uma cena de rapto de uma qualquer série de televisão.
Arrancamos
e uns quinhentos metros à frente paramos outra vez. As três faixas de estrada
estão ocupadas. Na da direita, uma família está calmamente a carregar bagagem
para dentro de um carro. Nas outras duas, estão dois carros parados e os
condutores envolvidos numa cena de... pugilato. Ninguém consegue passar. A cena
é surreal. O condutor do táxi, volta-se para trás, esboçando um grande sorriso.
Os seus olhos parecem dizer algo. Benvindo à Geórgia.
O calor
é insuportável apesar das janelas do carro irem abertas. Finalmente conseguimos
passar por uma das faixas e nos últimos quinze minutos temos conduzido por uma
paisagem... corrupta. Prédios semi-abandonados, ausência de passeios ou
passadeiras para peões, bastante pobreza e algum contraste com edifícios novos
e envidraçados. É aquele tipo de paisagem onde governos corruptos investem
noutras prioridades relegando a infra-estrutura e o bem-estar básico para
segundo plano. O trânsito não é caótico. É mais “formato livre” como gosto de
lhe chamar nos países onde há alguma liberdade e interpretação creativa das
regras de trânsito. Aqui pelo menos ainda há alguma obediência a regras e uns
escassos sinais de trânsito. Alguns condutores vão a extremos das avenidas para
inverterem a marcha correctamente e ninguém se atreve a pisar o duplo traço
contínuo que separa as vias de rodagem. Quanto a outras regras de trânsito, se
as há, estão apenas escritas nos manuais da escola. É um lugar intermédio entre
a educação cívica dos países do Norte e liberdade de expressão que se encontra
alguns graus de latitude a Sul - em cidades como Bangalore. Lá não há regras,
faixas ou sinais e o trânsito funciona como em qualquer formigueiro de
térmites. E não me lembro de ver semáforos a brilhar dentro de um formigueiro. It just works.
Chegamos
ao hotel. Parece que a escolha não foi das melhores, mas não havia muitas
alternativas. Quando a escolha é pouca, ou estão esgotados ou são muito caros.
O meu é caseiro e muito, muito duvidoso.
Saio à
rua para jantar. As redondezas do hotel transportam-me para o Rio de Janeiro. A
qualquer momento, espero ver uma série de miúdos a correr pelas escadas acima
da favela transportando a máquina fotográfica acabada de roubar a um turista.
Escondo o telefone no bolso, em jeito de acto reflexo. Ando duzentos metros e
vejo um conjunto de símbolos familiar. Marcas de cerveja. Um bar irlandês com o
redundante nome de “Murphy”. Em 15 anos de viagens pelo Mundo aprendi que há
apenas três certezas na vida: morte, impostos e um bar irlandês. Se estivesse
no meio do deserto, iria com certeza encontrar um bar irlandês antes de encontrar
um camelo. Murphy é escuro, comprido e cheio de mesas vazias. Muitas televisões
na parede que parecem observarem-se umas às outras e está fresco no interior.
Três jovens raparigas disputam o serviço à mesa, claramente surpreendidas por
terem um cliente. Uma traz os guardanapos, a outra os talheres e a última uma
cerveja. Todas trazem um sorriso. A mais destemida atreve-se a falar inglês,
pedindo desculpa por não falar muito bem. Eu uso um lugar comum para dizer que
é certamente melhor que o meu georgiano. Sorriso de orelha a orelha. O gelo
está quebrado. Falamos durante algum tempo.
A noite
foi quente, mas calma. O dia de trabalho foi agradável. O cliente prometeu
aparecer “por volta das 10 horas”.
Era quase meio-dia e eu já ia no terceiro café enquanto esperava. Valeu-me
estar de volta ao Murphy - onde cheguei às 9h45 - e a conversa com a mesma
empregada da noite anterior ajudou a passar o tempo. O sorriso era o mesmo e só
desvaneceu quando disse que apenas estava de visita por um dia. Foi como se lhe
tivessem dito que tinha perdido o emprego. O mundo desabou ali mesmo à frente
dela. Mas eu volto. E quando voltar, venho ao Murphy de certeza. O sorriso, a
medo, voltou.
Era
meio-dia em ponto quando o meu cliente chegou ao Murphy. Por alguns segundos
fiquei impressionado com a pontualidade, mas rapidamente me lembrei que
estávamos duas horas atrasados. Simpáticos, amáveis e... quase mediterrâneos no
trato. Duas horas de atraso são parte do modus
operandi da cultura. Não há necessidade de se desculpar, porque não há
atraso.
Reunimos
durante duas horas nos escritórios da empresa. A hora de almoço chegou. Os três
participantes da reunião, para além de mim, convidam-me para um almoço
georgiano. Conduzimos para os arredores da cidade no carro de um deles. O
auto-próprio, um Mercedes CL 55 AMG, tem mais cavalos no motor do que ele
precisa para conduzir naquelas estradas sem manutenção. Quatrocentos e muitos
diz ele. E mais um burro português a fazer de passageiro, penso eu. Gosto de
ter potência à disposição, para quando preciso. Eu fico contento por ter ar
condicionado naquele calor abafado. Prioridades.
Chegamos
ao restaurante. À beira rio. Um daqueles lugares idílicos com um enorme jardim
e mesas espalhadas pela natureza. Se não fosse terça-feira, diria que estava a
chegar a uma cerimónia de casamento. Somos levados para uma mesa redonda por
entre umas árvores e ao pé da água. Durante três horas, comemos dos mais
variados pratos locais e provamos três vinhos diferentes. O vinho é um dos
produtos exportados pela Geórgia. E com razão. É mesmo bom. São agora cinco da
tarde. Vamos voltar ao escritório para concluir. A quick wrap up. Sure. Naquele calor inusitado, sentado no Mercedes
a seguir a um almoço de três horas, a única coisa que me mantém acordado é a
brusquidão do motor. Se fosse mais confortável, já estaria a ressonar.
Acabado
o trabalho, por volta das seis, é hora de combinar... o jantar. Claro, o
primeiro assunto que me ocorre agora, quando ainda acabei de iniciar a digestão
do almoço, é o jantar. Por volta das oito. Fico contente porque isso deve
querer dizer dez da noite. Tenho tempo suficiente para fazer a digestão do
almoço.
O
cliente traz-me de volta ao hotel. Desta vez, um hotel diferente para remediar
a escolha da noite anterior. A conselho local, sigo para um edifício muito
elegante com um design simples, mas
soberbo, localizado no meio da montanha que ladeia o centro da cidade. A vista
é, no mínimo, deslumbrante. Piscina, bar, suite com varanda. Está-se bem. Agora
começo a gostar de Tbilisi.
São dez
de noite quando os meus colegas de reunião aparecem. O som inconfundível do
motor do Mercedes ouve-se pelas ruelas que ladeiam o hotel e entra pela área da
piscina a dentro. Acabo a cerveja georgiana que estou a beber. Fresca e muito
saborosa. Entro no carro e seguimos para a parte velha da cidade.
As
próximas duas horas são passadas a andar pelo centro histórico. Muito sui generis, cheio de bares com
apetitosas esplanadas numa noite onde estão quase trinta graus de calor. Mas
cheio de contrastes também. Edificíos abandonados lado a lado com uma ponte
de... design italiano. Uma ponte. De design italiano. Como qualquer fato
Armani. Ou o edifício da cultura também do mesmo designer. Italiano. Como um par de sapatos Dolce&Gabbana.
Incrível. Alguém em Itália está muito rico, deve pensar a mulher sem-abrigo que
vi numa das ruas ladeada por mais de trinta gatos esfomeados, um colchão e
alguns sacos de plástico com os seus haveres.
Apanhamos
o teleférico e vamos até ao ponto mais alto do centro, junto a uma muralha no
meio da encosta. Uma gigantesca estátua domina a cidade. É a Mãe-Geórgia. Numa
mão segura uma espada e na outra um cálice de vinho. Reza a lenda que esta
mulher protege o país. E cada vez que um visitante se atreve a viajar até aqui
é recebido por ela. Se o viajante vier de bem, a Mãe-Geórgia oferece-lhe vinho.
Se vier por mal, é corrido à espada. Algumas garrafas de vinho mais tarde,
voltamos ao hotel. O quarto está fresco e a vista da varanda convida a algumas
fotos. Até aqui ninguém puxou da espada.
O dia
seguinte foi curto. Pequeno-almoço à varanda do restaurante. São 9h da manhã e
já está um calor insuportável. Ou ainda
está. A manhã é passada no bar junto à piscina a trabalhar no computador. Em
Tbilisi pode não haver água em todas as casas, mas há wifi com certeza.
É uma da
tarde quando o meu táxi chega ao hotel. É um carro japonês pouco maior que um Smart. Quatro lugares no livrete, mas
dois na realidade. À frente. Porque atrás vão as malas. Um carro onde se
esticasse o braço para a esquerda, a mão sairia pela janela do condutor. Um
carro que surpreende pelo facto de o motor funcionar. No entanto, o rádio
tem... controle remoto. Nice music.
A viagem
de volta ao aeroporto foi... quente. Com a janela toda aberta, várias vezes
tive que me lembrar de dobrar o braço direito que ia fora da janela, para não
roçar com a mão na estrada. O condutor não diz uma palavra e segue de semblante
carregado, concentrado no tráfego e no vazio de regras. Mas chegámos e chegámos
bem. Saímos ambos do carro, o condutor passa-me a bagagem para a mão e segue.
Mas não sem antes me dar um valente e sincero aperto de mão. Como se aquela
viagem tivesse sido uma road trip de
semanas através de uma longa estrada. Como se estivéssemos ligados para sempre.
Um sorriso enorme e um thank you em
perfeito inglês. Enquanto desaparece no horizonte, ouço a música do rádio a
desvanecer.
O
aeroporto parece familiar. Afinal, dois dias antes tinha acabado de chegar. No
balcão de check-in perguntam-me se
gostaria de ter um lugar com mais espaço para as pernas, junto às saídas de
emergência. Digo que sim, claro, seria excelente. O funcionário chama a
supervisora. Matrona, de óculos ao peito, faz-me lembrar uma professora da
escola primária. Ele pede-lhe permissão para me dar um dos lugares com mais
espaço. Ela põe os óculos e olha-me de alto a baixo com a cara mais séria deste
mundo. A pausa de segundos parece uma eternidade. O suspense é demasiado. Vinho ou espada? A mão eleva-se para tirar os
óculos que caem sobre o peito outra vez. A face ilumina-se num sorriso e a
cabeça acena positivamente. Consegui. 11A. Saida de emergência e janela! Yes!
Por todo
o lado no aeroporto há cartazes de turismo com a frase “Tbilisi, the city that loves you”.
Absolutely.
Murphy, I will come back.
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