2013-06-27
Georgian diaries
Diário da Geórgia
2010-02-12
Burning Snow
She was like a snowy day at the beach. The best of both worlds.
The sandy colored hair reflected the light in a rainbow of single gold shades. Like the sand creating a landscape, her hair was uneven. The left rebel side was longer than the well-behaved right one. Yet, her face was in asymmetric harmony. Mozart would not have done any better.
Her eyes were like two windows on a house overlooking the sea. Blue. With frequent white tipped waves. A glare of pure beauty. A summer day with human shape.
And she was calm. She inspired calm. Everything in her was as soft as a flock of snow. She talked like a winter snowy day. Her voice tone resembled the quiet sound of snow falling on the ground. To only be listened by who pays attention to it.
Her lips were soft and shaped like a dune. Yet, tailored with an ice precision. Every time they moved, a soft whisper was felt. And every now and then they would reshape in a soul revealing smile. The big blue in her eyes would hit the shore in strong waves. The sun would hide, there was a brighter light in the sky.
Who's gonna run your wild horses. Bono was right. The question was still unanswered. Her eyes revealed an energy that knew no borders. Her outer beauty was a mere shadow of her inner self.
A hurricane of energy trapped inside a delicate cotton field. No owner. The plain was endless and the horses were running.
There were no good or bad things about her. Just things. No adjectives required. She was herself. Everything in her was true. When dealing with this sort of character there is no need for qualifiers. Honesty, in its purest form. The essential, is not visible to the eyes.
And she was the sweetest thing that ever existed. The cherry on top of the cake had left. Betrayed. Chocolate was bitter. Abandoned.
The letters hurried and the words got together. They failed. No sentence could describe her.
Nietzsche was wrong. God exists, after all. The world is a better place now.
Thank you Aleksandra.
2010-01-24
As filhas de Mozart
Eram para aí três e meia da tarde. O relógio no Blackberry indicava uma e meia. Duas horas de diferença entre Varsóvia e Moscovo obrigavam a um exercício mental que já se tinha tornado rotina. Mas isso pouco interessava agora.
A fila no controle de passaporte estava suportável. Cerca de dez pessoas, o que equivalia a pelo menos meia hora de espera. Mas esta era a fila pequena. As outras tinham pelo menos trinta a quarenta pessoas cada. O que eles não sabiam era que a fila para Diplomatas servia para toda a gente também. Umas quantas aterragens em Moscovo já tinham dado para perceber que a fila especial era, apenas, normal. Só um letreiro diferente fazia a triagem entre viajantes experimentados e novatos. Diplomatas não eram para aqui chamados.
Valia-lhe o Blackberry para passar o tempo. Aproveitava estas pausas forçadas do dia para ler todas as mensagens que não lera nas últimas duas horas que o vôo durara. Às vezes, mas quase nunca, eram poucas. Esta meia horita era ouro sobre azul para pôr o trabalho em dia. Um pedido de férias, um problema num projecto, uma actualização para o chefe, nada ficava por responder desatempadamente. Quando dava por si, já estava a pisar a risca amarela. “Esperar aqui”. Tudo bem. Ainda falta responder a duas mensagens. Temos tempo.
Boa tarde. Era sempre a mesma expressão inamovível do funcionário da alfândega. Todos os movimentos eram estudados e sincronizados. A energia dispendida na coordenação impossibilitava qualquer tipo de sorriso ou de som. Mesmo gutural. Nada. Um conjunto de computadores, um autómato, um passaporte e muitos movimentos mecânicos.
Cinco minutos depois, ouvia-se o clique do portão metálico e o passaporte estava de volta na mão. Bem vindo à Rússia. Sem fogo de artifício, festa ou carpete vermelha. Apenas um átrio de bagagem cheio de malas no chão. O lado positivo da história é que podia, de facto, afirmar que o tempo de espera pela bagagem em Moscovo é nulo. A mala, aqui, espera pelo viajante.
Uns minutos depois, o átrio das chegadas não escondia a realidade. Havia mais motoristas com nomes de grandes empresas escritos em placas, do que famílias à espera por saudade. Um olhar em volta, e lá estava ele. Olá Yuri. Como estás? Sempre o mesmo sorriso franco e um valente aperto de mão. Bruna! O primeiro e único sorriso que dava sentido à chegada. Afinal, não estou num país estranho. Afinal, há gente que vive aqui. E o meu nome é Bruno. Mas a simpatia perdoava-lhe o sotaque.
Fazia sempre questão de levar a mala. Pesada ou não. Uma dedicação que se confundia entre a felicidade de ter um emprego que lhe permitia transportar “notáveis” personalidades ou o simples prazer de alguém que lhe ia fazer companhia na próxima hora num trânsito danado. A conversa, no entanto, era interessantíssima.
Yuri falava sempre em russo, muito, com uma expressão honesta de quem está sinceramente a partilhar pensamentos e opiniões. Valia-lhe os gestos que fazia e os que levava em troca. Uma mini torre de Babel enclausurada dentro de um carro. Mas a cada gesto e expressão trocada, mais um tijolo da torre caía. E mais Yuri gostava da tarefa que cumpria.
A viagem de carro até ao hotel demorava, no melhor dos dias, quarenta e cinco minutos. Chegou a demorar quatro horas, em dias que o trânsito se mostrava em pleno e o relógio era obrigado a recuar. Hoje parecia que nem os carros nem os ponteiros precisavam de mostrar o seus egos. Lá para as cinco estou no hotel, pensou.
Pouco depois do aeroporto, a janela do carro ficava coberta de prédios. Passavam rápido de mais para as retinas poderem acompanhar. A velocidade do carro, a idade do veículo e a intensidade do trânsito eram variáveis que pertenciam a um sistema de equações que, com certeza, só Yuri conseguia resolver. Por isso era feliz naquilo que fazia. Uma arte, como outra qualquer.
Há uns meses atrás, quando a duração média da viagem ainda não era um dado adquirido, todas as paragens pareciam concidir com o destino. Mas não, a cada paragem o semáforo voltava a ficar verde e o destino voltava a ficar incógnito. Agora, já nem se preocupava com as paragens. Apenas a paisagem continuava a suscitar curiosidade. Quarenta e cinco minutos de... prédios a alta velocidade. E o destino nem ficava no centro. Moscovo é tão grande que provavelmente nem é plana. Acompanha a curvatura da Terra.
Cinco em ponto. Obrigado Yuri. Até à próxima. Com certeza.
Boa tarde. Um sorriso enorme veio do outro lado da recepção. Boa tarde, senhor Lopes. Como está? Muito melhor, agora que cheguei aqui. O micro diálogo era sempre o mesmo. Mas estabelecia as regras básicas. Aqui estou, contente por estar num sítio familiar. E, quanto a nós, contentes por tê-lo aqui. Às vezes, os mais sinceros sentimentos eram expressos por conversas repetitivas, aparentemente formais. Desta vez vai ser o 2218. Esperemos que goste da estadia. Com certeza que vou gostar. Há tantas noites que ficava naquele hotel, que só não lhe davam um quarto num andar mais alto, porque não podiam. O céu era o limite. Ou, neste caso, o céu era o andar 22. Havia mais uns dois andares acima, e um restaurante panorâmico era a cereja no cimo do doce. De tão alto, fazia pensar se S.Pedro não estaria à porta a receber os convidados.
Uma hora e muita arrumação depois já estava de volta aos pisos térreos do hotel. O bar era acolhedor. Olá Sr. Lopes. Uma cerveja – grande ou pequena? Apenas o tamanho estava em questão, porque depende da disposição. O resto, era acolhimento puro. Aquele chegar a casa onde toda a gente é conhecida e sabe o que gostamos. Hoje, pode ser pequena. Havia mais umas quantas mensagens por responder. Mas agora, o computador portátil tinha dado descanso ao Blackberry que precisava de recuperar energias e estava intimamente ligado ao carregador de bateria alguns pisos acima. Que se divirtam os dois.
A cerveja era cerveja. De tanto viajar pelo Mundo fora aprendera que os hábitos fixos são tampões do conhecimento. Um espírito aventureiro apenas flutua numa mente aberta, caso contrário morre afogado. Desde que esteja fresquinha, é cerveja. E se ajudar à pausa para responder a umas mensagens mais elaboradas que seriam morosas de escrever num mini teclado, ainda melhor. Um pequeno esforço que poupava muitas preocupações no dia seguinte. Aquilo que, no princípio, era uma vantagem que permitia aos humanos comunicar com pessoas em modo off-line compensando a despesa das chamadas telefónicas, depressa se tornou numa fonte de stress. Raça sedenta de comunicação. Hoje, não responder a um e-mail a tempo era o equivalente a não atender a uma chamada. Ganhou-se no custo, mas não se perdeu nada no stress. Como tal, um Blackberry era a mesma fonte de calma que um fim-de-semana nas termas. Permanente. Um sinal dos tempos.
A hora de jantar chegou depressa. Havia uns quantos restaurantes do outro lado da rua do hotel. O maior desafio não era escolher um, mas sim chegar a um. Não só a rua lá fora tinha quatro faixas que perfaziam uma larga avenida, como estava frescote. Um tudo nada frio. Menos muitos, como costumava dizer. Tudo o que fosse abaixo de dez negativos era frio. Com dois dígitos, o número já não interessava. As narinas congelavam, o crânio contraía-se, as orelhas deixavam de existir. E os carros demoravam mais a travar.
As passadeiras de peões em Moscovo situavam-se ao mesmo nível da linha de metro. Eram invisíveis ao olho humano dos condutores. Como tal, atravessar uma avenida de quádrupla faixa em condições normais era já um desafio aventureiro. Em temperaturas sub-zero, passava a ser um exercício suicida. No entanto, gostava de o fazer. O ar fresco da noite e a aventura de chegar ao outro lado, despoletavam aquela adrenalina que faz qualquer um sentir-se vivo. Ir jantar fora do hotel era acerca de satisfazer uma necessidade de adrenalina, não a fome.
Havia três restaurantes do outro lado. Dois japoneses e uma cervejaria russa. Conhecia o menu de todos de cor assim como o nome dos empregados, mas hoje escolhera a cervejaria. Por nenhuma razão em especial. Elena, a recepcionista, era alta e esfíngica. Cabelo preto cristalino caído pelos ombros e andar bamboleante. Agora, já me lembro porque venho aqui, pensou. Extremamente simpática e faladora. Falava sempre em russo e os sorrisos embaraçados que levava de volta eram, pelos vistos, suficientes para comunicar. Porque sempre que lá voltava, ela continuava a falar imenso. Em russo.
Fazia pensar no quanto a situação pode ser intimidante. Sempre que visitava um país estranho, a maior parte dos residentes fazia os possíveis por falar uma língua comum, normalmente inglês. A clara insuficiência linguística de alguns países noutros dialectos tornava o visitante num orgulhoso estranho que sente os seus hóspedes como subalternos da comunicação. Na Rússia, o facto de toda a gente falar em claro e óbvio russo, independentemente da origem do visitante, inverte os papéis. Tornava-se embaraçoso não falar a língua. E como tal, o subalterno era o visitante. Uma eficiente maneira de lidar com a não-proficiência noutras línguas. Típicamente russo.
Mas aqui, na cervejaria, já era cliente da casa. Toda a gente falava honestamente russo para tentar comunicar. O que só aumentava o sentimento de embaraço. Mas a comida era boa e a cerveja era... fresquinha. Como devia ser.
Umas duas horas depois, estava na hora de regressar. Até amanhã Elena. Eram das poucas palavras que sabia dizer em russo. A motivação dá forças que a razão desconhece.
Mais um shot de adrenalina para espevitar o tranquilo sentimento de um estômago cheio. Uns quantos minutos depois, o hotel aquecia o corpo e a alma. Lar, doce lar. A cama, de casal, espera. E é ciumenta. Não quer lá mais ninguém.
Acordou com o sol a bater-lhe na cara. Uma das vantagens de dormir virado para leste a uma altura daquelas. A primeira coisa que fez foi olhar através das cortinas. A paisagem estava friamente hirta. Devem estar menos muitos. Outra vez.
Meia hora depois estava a caminho do 25º andar. Como hóspede regular, tinha direito a tomar o pequeno-almoço num lugar mais alto do que quarto. A grande maioria dos hóspedes tinha que disputar a torradeira do piso térreo num verdadeiro frenesim de gente e comida. Mas não no 25º. Hóspedes celestiais devem tomar o pequeno-almoço no céu, longe das preocupações terrenas.
Ao chegar, pensou que os apóstolos se enganaram nas descrições bíblicas, ou se calhar é um anjo delegado, mas aquela silhueta esguia de cabelos ruivos, sorriso cristalino e saltos tão altos como o andar onde se encontrava, não podia ser S.Pedro. Bom dia Sr.Lopes. Bom dia Olga. Agora sim, vai ser um bom dia. O menu era tão farto como parcos os hóspedes. Um verdadeiro sossego complementado pelo grandioso postal de Moscovo que as janelas proporcionavam. Até onde se estendia a cidade?
Isso agora não interessava, a torrada estava pronta e o café acabava de chegar.
Algum conforto depois, estava na hora de começar o dia de trabalho. A verdadeira razão pela qual tinha tomado o pequeno-almoço perto do céu. Nada neste mundo é dado sem uma razão terrena que lhe retira o sentido. De volta ao 1º andar, que em Moscovo é aquilo que o resto do Mundo conhece por rés-do-chão, era altura para as últimas verificações. Casaco fechado, luvas, computador, telefone. Está tudo. Vamos lá, murmurou, antes de cerrar os lábios.
Ao passar a porta rotativa do hotel, já se sentia a ausência de conforto. Era como se todos os elementos o tivessem abandonado. Deve ser isto que os cosmonautas sentem. Puro vácuo. Muitos, mas muitos menos graus. Apenas cinco minutos a andar até à estação de metro eram suficientes para acordar qualquer mortal. Ao chegar à estação,o exercício invertia-se. Estava quente lá dentro. Abre casaco, tira luvas. Cuidado com as escadas. A água escondida no gelo lá de fora, resguardou-se nos degraus. Traiçoeira.
O sistema de metro em Moscovo era, numa conservadora opinião, impressionante. Os mil e setenta quilómetros quadrados por onde a cidade se espreguiçava eram totalmente cobertos por túneis onde comboios seguiam a alta velocidade como toupeiras apressadas. Um novo conjunto de vagões estava disponível de trinta em trinta segundos. Na superfície, uma qualquer estação de metro aparecia a cada cem, duzentos metros. Matemática fácil permitia concluir que a qualquer ponto do tempo o número de comboios e passageiros abrigados nos túneis era... incomensurável. Eficiência russa, no seu expoente máximo.
Sempre que entrava num comboio lembrava-se das palavras casualmente trocadas por um colega russo uns tempos atrás. A maior taxa de suicídios em Moscovo é de motoristas de metro. Reconfortante. As portas fecharam violentamente, o comboio arrancou e adquiriu velocidade. Esperemos que o motorista se sinta feliz, pensou. Pelo menos hoje. Pelos próximos quinze minutos.
O nível de organização da população russa chegava a extremos que por vezes levavam a compreensão ao limite. Dentro das carruagens de metro, havia uma bailado físico dos corpos que desafiaria a curiosidade de qualquer antropólogo. O grupo de pessoas que partilhavam o destino comum da próxima estação agrupava-se atempadamente junto às portas durante o trajecto. Por sua vez, os que partilham destinos mais longínquos aglomeravam-se no centro da carruagem. A distância à porta da carruagem era directamente proporcional à distância para a estação de destino.
Nas primeiras vezes que utilizou o sistema, foi confrontado com muitas palavras russas proferidas com caras de reprovação. Sentiu que era um impecilho no sistema. Agora já sabia. Alojou-se na carruagem a uma distância da porta socialmente aceitável.
Um quarto de hora depois, sentia-se orgulhoso. Fora o primeiro a sair da carruagem. Tudo feito correctamente. Os companheiros de viagem, não tinham exibido caras de reprovação. Só por isso, tinha sido uma vitória. O dia começara mesmo bem.
A estação de metro de destino era grandiosa. Como quase todas. Algumas eram verdadeiras galerias de arte no subsolo. Aproximou-se das escadas rolantes que o levariam à superfície e preparou-se para o próximo ritual social. Uma amálgama de gente esperava, ordeiramente, no sopé das escadas. Um a um tomavam o seu lugar nos degraus que apareciam do chão. Todos, mas todos, geometricamente alinhados à direita, deixando o lado esquerdo livre. Devagar, a amálgama dissipou-se e estava orgulhosamente assente num degrau mecânico. Isto hoje, estava mesmo a correr bem. O grupo que descia do lado oposto seguia as mesmas regras. Facilitando a tarefa de quem estava com pressa e podia então usar o lado esquerdo das escadas para combater o relógio. Eficiente. Uma sociedade intrínseca e assustadoramente eficiente.
Ao sair da estação ainda não estava na superfície. Encontrava-se nos túneis que se escondem por baixo de todos os cruzamentos de ruas em Moscovo. Serviam basicamente dois propósitos sociais. Possibilitavam a fácil movimentação de peões sem que o trânsito lá fora tivesse que ser incomodado. E ao mesmo tempo albergava um conjunto de lojas e quiosques sedentos de negócio e estrategicamente bem colocados perante tal multidão subterrânea. Estava quente no túnel.
Ao chegar lá fora, o edifício do banco estava a uma amigável distância de dois minutos. Muitos menos outra vez. Mas por pouco tempo. O edifício era monumental, arquitectonicamente aborrecido, mas grandioso. Uma ode ao cimento e pedra sem qualquer traço de elegância. Como muitos em Moscovo. Entrou pela porta principal e usou o cartão electrónico de acesso. Com um clique, o bloqueador de entradas aliviou-se. O dia de trabalho acabara de começar.
Ao chegar ao quinto andar, entrou na sala B-505. Bom dia Bruno. Bom a dia a todos. Já conhecia aqueles oito colegas russos há alguns meses. Nesse tempo, ensinara-os a pronunciar correctamente o nome. Alguns ainda se esforçavam, mas quase sempre sucediam orgulhosamente. Como recompensa, já sabia os cumprimentos básicos em russo. A torre de Babel existe, mas não resiste por muito tempo. Todos os dias caía mais um tijolo.
Durante seis meses lidara de muito perto com este pequeno grupo de dedicada gente. Aprenderam juntos a ultrapassar as diferenças nas praxis que os faziam tão culturalmente diferentes. A raça humana de hábitos aprende a adaptar-se às situações mais difíceis. Aqui, a fórmula era simples. Um povo resistentemente sobrevivente habituado a suportar inóspitas condições, e um espírito aventureiro com gosto em sobreviver à resistência. Pareciam feitos um para ou outro.
O dia de trabalho passava depressa. Demasiadas mensagens, telefonemas e reuniões faziam esquecer o relógio. Rapidamente ficava de noite e o instinto funcionava como despertador. Hora de regressar ao hotel. O trabalho, esse, nunca acabava. Mas o edifício ia fechar.
Dez minutos depois ouvia-se o clique familiar. O bloqueador de acesso aliviava-se outra vez, fechava o casaco e esperava um segundo para que a porta principal se abrisse automaticamente. Frio. Muito. Caminhava com cuidado no passeio gelado. Os serviços de alguém garantiam sempre que as ruas estivessem livres de neve. No entanto, o frio encarregava-se de congelar aqueles pedaços pequenos demais para serem notados pelos serviços de limpeza. A água concentrava-se e camuflava-se no chão. Traiçoeiramente à espera do caminhante desprevenido. Um passo em falso, e os elementos tinham vencido o homem.
A neve em Moscovo era diferente do resto do Mundo. Não era uma fonte de divertimento e não cobria a paisagem com um manto de admirável beleza. Era suja, escura, incómoda e permanente. Por muito que fosse limpa das ruas, continuava a nevar. E as ruas continuavam limpas. Horas infinitas dispendidas a mover água de um sítio para o outro. Uma infindável batalha que acabava quando um dos lados desaparecia misteriosamente. Com a chegada do calor, a neve derretia e amolecia em água que se dissipava. A batalha acabava sem nenhum dos lados sentir vitória. Cobardemente, a neve abandonava o terreno. Com a certeza de que voltaria. Era uma luta sem vencedores. Ingrata e desgastante.
O metro entrou na estação a alta velocidade e travou rapidamente. Socialmente bem colocado no átrio da estação, entrou na carruagem sem problemas. A viagem foi rápida. Ainda havia umas quantas mensagens a responder, o pensamento estava longe. Apenas saiu do comboio, porque sabia que era ali. Era sempre o mesmo número de paragens e o cérebro já se habituara a mentalmente medir a distância temporal sem interromper outros pensamentos mais importantes.
Boa noite Sr. Lopes. Olá Andrey. Dia de trabalho e computador aberto na mesa do bar significavam uma cerveja, mas pequena. Era uma fórmula já conhecida pelo empregado do bar do hotel. Ali estava ela. Fresquinha. E ansiosa por trocar intimidades com os lábios do sedento cliente.
O trabalho continuaria por mais uma hora ou duas. Ainda faltava fazer uns quantos telefonemas, porque os colegas do outro lado do Atlântico tinham acabado de começar o seu dia de trabalho. Ter o Mundo como um grande escritório aumentava-lhe o potencial para prestar bom serviço aos clientes. Mas aumentava também a duração das horas de expediente na mesma proporção. Agora, ao contrário de há uns anos atrás, os dias tinham que se estender para caber no horário de trabalho. Mas o Sol e Lua não colaboravam. Estavam demasiado distraídos a perseguirem-se no céu para lhe fazer a vontade. Para os contrariar, usava os fusos horários, criando dias virtuais mais longos que funcionassem a seu favor.
Enquanto saboreava aquela cerveja lânguida e fácil, pensou onde iria jantar nesse dia. Talvez fosse visitar a Elena. Praticava russo e enchia os olhos. A comida, essa, podia ser qualquer uma.
A semana passou rapidamente. Vários carregamentos das baterias do computador e do telefone depois, a sexta-feira decidiu impôr-se no calendário. Trazia sempre consigo a mesma dádiva. Os irmãos Sábado e Domingo. Andavam sempre juntos a distribuir descanso pelo Mundo a quem quisesse, ou precisasse, de um pedaço. Desta vez, iria aceitar com certeza a bondade destes rapazes. Não porque quisesse, mas estava a precisar. Só faltava uma viagem de regresso a Varsóvia e o computador ficaria de castigo na mala de transporte. Mas para isso ainda tinha que chegar ao aeroporto.
A sexta-feira de viagem era sempre um dia que obrigava o relógio a complementar o instinto temporal. Tinham que trabalhar os dois juntos em sincronia porque o ritual a seguir não permitia erros nem distracções. Os horários no aeroporto eram rígidos, mas conhecidos. Era sempre o mesmo vôo de regresso a meio da tarde. Das primeiras vezes que tinha regressado de Moscovo, usou os serviços de Yuri, mas no sentido oposto. Arrependeu-se rapidamente. O trânsito de final de semana, estendia para quatro horas o que, de outra forma, seria um trajecto de quarenta e cinco minutos. Como tal, estudou uma alternativa e encontrou-a no comboio que liga o centro ao aeroporto num trajecto directo de meia hora. Mas isso obrigava a um cuidado e cirúrgico horário que tinha que ser cumprido. Com a precisão usada numa mesa de operações tinha que suturar o metro, o comboio e os trajectos a pé numa costura só, que começava no edifício do banco e acabava no balcão de check-in do aeroporto. Por isso, às sextas-feiras, o relógio assumia um papel determinante no dia. Deixava de ser apenas um enfeite no pulso.
Duas e meia em ponto ditava o relógio mecanicamente ao passar a porta do átrio de partidas do aeroporto. Suturado na perfeição, o paciente da viagem podia agora acordar. Aquele enfeite prateado com três ponteiros irrequietos cumprira a sua missão outra vez.
O átrio estava sempre cheio. De gente, de malas, de saudade. Seguiu os rituais todos necessários a dar um certo grau de conforto às autoridades. Raios-X, identificação, verificação e carimbo no passaporte. Sempre a mesma regra. Carimbo de saída fica ao lado do carimbo de chegada. O círculo estava completo. Podia seguir para a porta de embarque.
Entrou no avião e colocou a mala do computador na bagageira por cima do assento. Não sem antes retirar o leitor de música portátil que lhe faria companhia a muitos metros de altura. Sentou-se, ajustou os auscultadores e escolheu a sonata para piano n.11. As deliciosamente irrequietas notas de Mozart comecaram a dançar na mente. Traídas, as mensagens pairavam no ar, desnorteadas, sem aparelho para se alojarem. O Blackberry estava desligado e esquecido na bagageira. Ignóbil. Estavam condenadas a pairar eternamente no vácuo. Ou até que o aparelho fosse ligado outra vez. Mas isso, agora, pouco interessava. Mozart tinha ganho.
A semana seguinte foi a mesma sequência de dias e rituais de trabalho. No escritório global, apenas tinha mudado de secretária e de côr. Como camaleão cultural, fazia sempre ligeiros ajustes cromáticos quando mudava de galho. Este, ficava em Varsóvia. Reuniões, telefonemas e alguns problemas de última hora, obrigaram-no a declinar a oferta dos irmãos fim-de-semana. Era preciso preparar o regresso a Moscovo.
Na segunda-feira a seguir, aterrava nas inóspitas terras russas outra vez. Desta feita, o avião transportava mais viajantes frequentes. Reparou nisso ao chegar a fila do controle de passaporte. Pelo menos vinte pessoas à sua frente. E esta, era a dos Diplomatas. As outras eram as impossivelmente lentas.
Desligou o aparelho de musica portátil, ordenando às notas de música o regresso ao seu interior. As mensagens agitaram-se no ar. A hora estava a chegar. Deseducadamente, empurravam as notas para dentro do aparelho musical. Mas as pequeninas não se importavam. Existiam há mais anos que a tecnologia que criou as mensagens. E iriam continuar ad eternum. Como insectos irritantes num dia de Verão, as mensagens tinham vida efémera. Cedo morrerão quando uma qualquer nova moda aparecer, pensou. As notas, essas, resistem a modas.
Ordenadamente alojadas, Mozart tinha-as educado na austeridade e perfeição. Da próxima vez que o aparelho fosse ligado, sairíam exactamente pela mesma ordem. Mas com uma irrequietude e beleza que as tornava inconfundíveis. Arte, no seu estado mais puro.
Pelo menos uma hora de espera, pensou, enquanto carregava no botão que activava o Blackberry. Num ápice, as mensagens começaram a dar dentadas na bateria do aparelho e encostaram-se numa longa fila que as marcava como não lidas. Não havia tempo a perder. Vamos a isso, murmurou. Pacientemente, começou a lê-las uma a uma.