2013-06-27

Diário da Geórgia


À entrada do avião, já se sente um ambiente diferente. Cada uma das três cadeiras de cada lado do avião tem uma cor diferente: verde, amarelo e azul. Parece que estamos dentro do arco-íris. Para trás fica o ambiente formal do aeroporto russo. Aqui, toda a gente conversa, o staff é simpático. Há sorrisos por todo o lado. Mas a língua é misteriosa. Não soa a nada ouvido antes. A escrita é peculiar. Parece tailandês, mas não é. Como chinês parece japonês. O melhor é ficar calado e não fazer comparações sem sentido.

À chegada está um calor esbaforido. Não se consegue respirar. Os oficiais de fronteira, quase todas mulheres, são bonitas e sorridentes. O aeroporto tem um ambiente pristino. Passadas as formalidaddes de entrada, chegamos a um parque de estacionamento exterior com uma paragem de táxis bastante concorrida. Num ápice, dois invidíduos pegam-me na mala e numa conversa rápida em inglês macarrónico perguntam-me para onde vou. Dou o nome do hotel e eles traduzem a conversa para o condutor, um terceiro indivíduo que já estava dentro do táxi, e empurram-me para dentro do carro. Serviço eficiente, rápido e fulminante. Pareceu uma cena de rapto de uma qualquer série de televisão.

Arrancamos e uns quinhentos metros à frente paramos outra vez. As três faixas de estrada estão ocupadas. Na da direita, uma família está calmamente a carregar bagagem para dentro de um carro. Nas outras duas, estão dois carros parados e os condutores envolvidos numa cena de... pugilato. Ninguém consegue passar. A cena é surreal. O condutor do táxi, volta-se para trás, esboçando um grande sorriso. Os seus olhos parecem dizer algo. Benvindo à Geórgia.

O calor é insuportável apesar das janelas do carro irem abertas. Finalmente conseguimos passar por uma das faixas e nos últimos quinze minutos temos conduzido por uma paisagem... corrupta. Prédios semi-abandonados, ausência de passeios ou passadeiras para peões, bastante pobreza e algum contraste com edifícios novos e envidraçados. É aquele tipo de paisagem onde governos corruptos investem noutras prioridades relegando a infra-estrutura e o bem-estar básico para segundo plano. O trânsito não é caótico. É mais “formato livre” como gosto de lhe chamar nos países onde há alguma liberdade e interpretação creativa das regras de trânsito. Aqui pelo menos ainda há alguma obediência a regras e uns escassos sinais de trânsito. Alguns condutores vão a extremos das avenidas para inverterem a marcha correctamente e ninguém se atreve a pisar o duplo traço contínuo que separa as vias de rodagem. Quanto a outras regras de trânsito, se as há, estão apenas escritas nos manuais da escola. É um lugar intermédio entre a educação cívica dos países do Norte e liberdade de expressão que se encontra alguns graus de latitude a Sul - em cidades como Bangalore. Lá não há regras, faixas ou sinais e o trânsito funciona como em qualquer formigueiro de térmites. E não me lembro de ver semáforos a brilhar dentro de um formigueiro. It just works.

Chegamos ao hotel. Parece que a escolha não foi das melhores, mas não havia muitas alternativas. Quando a escolha é pouca, ou estão esgotados ou são muito caros. O meu é caseiro e muito, muito duvidoso.

Saio à rua para jantar. As redondezas do hotel transportam-me para o Rio de Janeiro. A qualquer momento, espero ver uma série de miúdos a correr pelas escadas acima da favela transportando a máquina fotográfica acabada de roubar a um turista. Escondo o telefone no bolso, em jeito de acto reflexo. Ando duzentos metros e vejo um conjunto de símbolos familiar. Marcas de cerveja. Um bar irlandês com o redundante nome de “Murphy”. Em 15 anos de viagens pelo Mundo aprendi que há apenas três certezas na vida: morte, impostos e um bar irlandês. Se estivesse no meio do deserto, iria com certeza encontrar um bar irlandês antes de encontrar um camelo. Murphy é escuro, comprido e cheio de mesas vazias. Muitas televisões na parede que parecem observarem-se umas às outras e está fresco no interior. Três jovens raparigas disputam o serviço à mesa, claramente surpreendidas por terem um cliente. Uma traz os guardanapos, a outra os talheres e a última uma cerveja. Todas trazem um sorriso. A mais destemida atreve-se a falar inglês, pedindo desculpa por não falar muito bem. Eu uso um lugar comum para dizer que é certamente melhor que o meu georgiano. Sorriso de orelha a orelha. O gelo está quebrado. Falamos durante algum tempo.

A noite foi quente, mas calma. O dia de trabalho foi agradável. O cliente prometeu aparecer “por volta das 10 horas”. Era quase meio-dia e eu já ia no terceiro café enquanto esperava. Valeu-me estar de volta ao Murphy - onde cheguei às 9h45 - e a conversa com a mesma empregada da noite anterior ajudou a passar o tempo. O sorriso era o mesmo e só desvaneceu quando disse que apenas estava de visita por um dia. Foi como se lhe tivessem dito que tinha perdido o emprego. O mundo desabou ali mesmo à frente dela. Mas eu volto. E quando voltar, venho ao Murphy de certeza. O sorriso, a medo, voltou.

Era meio-dia em ponto quando o meu cliente chegou ao Murphy. Por alguns segundos fiquei impressionado com a pontualidade, mas rapidamente me lembrei que estávamos duas horas atrasados. Simpáticos, amáveis e... quase mediterrâneos no trato. Duas horas de atraso são parte do modus operandi da cultura. Não há necessidade de se desculpar, porque não há atraso.

Reunimos durante duas horas nos escritórios da empresa. A hora de almoço chegou. Os três participantes da reunião, para além de mim, convidam-me para um almoço georgiano. Conduzimos para os arredores da cidade no carro de um deles. O auto-próprio, um Mercedes CL 55 AMG, tem mais cavalos no motor do que ele precisa para conduzir naquelas estradas sem manutenção. Quatrocentos e muitos diz ele. E mais um burro português a fazer de passageiro, penso eu. Gosto de ter potência à disposição, para quando preciso. Eu fico contento por ter ar condicionado naquele calor abafado. Prioridades.

Chegamos ao restaurante. À beira rio. Um daqueles lugares idílicos com um enorme jardim e mesas espalhadas pela natureza. Se não fosse terça-feira, diria que estava a chegar a uma cerimónia de casamento. Somos levados para uma mesa redonda por entre umas árvores e ao pé da água. Durante três horas, comemos dos mais variados pratos locais e provamos três vinhos diferentes. O vinho é um dos produtos exportados pela Geórgia. E com razão. É mesmo bom. São agora cinco da tarde. Vamos voltar ao escritório para concluir. A quick wrap up. Sure. Naquele calor inusitado, sentado no Mercedes a seguir a um almoço de três horas, a única coisa que me mantém acordado é a brusquidão do motor. Se fosse mais confortável, já estaria a ressonar.

Acabado o trabalho, por volta das seis, é hora de combinar... o jantar. Claro, o primeiro assunto que me ocorre agora, quando ainda acabei de iniciar a digestão do almoço, é o jantar. Por volta das oito. Fico contente porque isso deve querer dizer dez da noite. Tenho tempo suficiente para fazer a digestão do almoço.

O cliente traz-me de volta ao hotel. Desta vez, um hotel diferente para remediar a escolha da noite anterior. A conselho local, sigo para um edifício muito elegante com um design simples, mas soberbo, localizado no meio da montanha que ladeia o centro da cidade. A vista é, no mínimo, deslumbrante. Piscina, bar, suite com varanda. Está-se bem. Agora começo a gostar de Tbilisi.

São dez de noite quando os meus colegas de reunião aparecem. O som inconfundível do motor do Mercedes ouve-se pelas ruelas que ladeiam o hotel e entra pela área da piscina a dentro. Acabo a cerveja georgiana que estou a beber. Fresca e muito saborosa. Entro no carro e seguimos para a parte velha da cidade.

As próximas duas horas são passadas a andar pelo centro histórico. Muito sui generis, cheio de bares com apetitosas esplanadas numa noite onde estão quase trinta graus de calor. Mas cheio de contrastes também. Edificíos abandonados lado a lado com uma ponte de... design italiano. Uma ponte. De design italiano. Como qualquer fato Armani. Ou o edifício da cultura também do mesmo designer. Italiano. Como um par de sapatos Dolce&Gabbana. Incrível. Alguém em Itália está muito rico, deve pensar a mulher sem-abrigo que vi numa das ruas ladeada por mais de trinta gatos esfomeados, um colchão e alguns sacos de plástico com os seus haveres.

Apanhamos o teleférico e vamos até ao ponto mais alto do centro, junto a uma muralha no meio da encosta. Uma gigantesca estátua domina a cidade. É a Mãe-Geórgia. Numa mão segura uma espada e na outra um cálice de vinho. Reza a lenda que esta mulher protege o país. E cada vez que um visitante se atreve a viajar até aqui é recebido por ela. Se o viajante vier de bem, a Mãe-Geórgia oferece-lhe vinho. Se vier por mal, é corrido à espada. Algumas garrafas de vinho mais tarde, voltamos ao hotel. O quarto está fresco e a vista da varanda convida a algumas fotos. Até aqui ninguém puxou da espada.

O dia seguinte foi curto. Pequeno-almoço à varanda do restaurante. São 9h da manhã e já está um calor insuportável. Ou ainda está. A manhã é passada no bar junto à piscina a trabalhar no computador. Em Tbilisi pode não haver água em todas as casas, mas há wifi com certeza.

É uma da tarde quando o meu táxi chega ao hotel. É um carro japonês pouco maior que um Smart. Quatro lugares no livrete, mas dois na realidade. À frente. Porque atrás vão as malas. Um carro onde se esticasse o braço para a esquerda, a mão sairia pela janela do condutor. Um carro que surpreende pelo facto de o motor funcionar. No entanto, o rádio tem... controle remoto. Nice music.

A viagem de volta ao aeroporto foi... quente. Com a janela toda aberta, várias vezes tive que me lembrar de dobrar o braço direito que ia fora da janela, para não roçar com a mão na estrada. O condutor não diz uma palavra e segue de semblante carregado, concentrado no tráfego e no vazio de regras. Mas chegámos e chegámos bem. Saímos ambos do carro, o condutor passa-me a bagagem para a mão e segue. Mas não sem antes me dar um valente e sincero aperto de mão. Como se aquela viagem tivesse sido uma road trip de semanas através de uma longa estrada. Como se estivéssemos ligados para sempre. Um sorriso enorme e um thank you em perfeito inglês. Enquanto desaparece no horizonte, ouço a música do rádio a desvanecer.

O aeroporto parece familiar. Afinal, dois dias antes tinha acabado de chegar. No balcão de check-in perguntam-me se gostaria de ter um lugar com mais espaço para as pernas, junto às saídas de emergência. Digo que sim, claro, seria excelente. O funcionário chama a supervisora. Matrona, de óculos ao peito, faz-me lembrar uma professora da escola primária. Ele pede-lhe permissão para me dar um dos lugares com mais espaço. Ela põe os óculos e olha-me de alto a baixo com a cara mais séria deste mundo. A pausa de segundos parece uma eternidade. O suspense é demasiado. Vinho ou espada? A mão eleva-se para tirar os óculos que caem sobre o peito outra vez. A face ilumina-se num sorriso e a cabeça acena positivamente. Consegui. 11A. Saida de emergência e janela! Yes!

Por todo o lado no aeroporto há cartazes de turismo com a frase “Tbilisi, the city that loves you”.

Absolutely.

Murphy, I will come back.

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