2009-12-19

Quando o azul se tornou cinzento

Nada fazia adivinhar que este dia se viesse a tornar negro e tempestuoso.

Qual gume de uma faca, a críspida linha do horizonte cortava o azul em dois. O céu brilhava reflectido num mar calmo e pontilhado de carneirinhos de espuma brancos. Alguns barquitos de pesca aqui e ali albergavam pescadores que mais pareciam pastores a guardar os seus rebanhos de ondas.

O sol estava quente. Em brasa. Devagarinho sulcava mais umas rugas na já gasta e velha face do José. Pele castanha, endurecida por anos de sol, sal e água. Pedra dura, que nunca furou por muita água que batesse. Faroleiro de profissão, aproveitava dias como este para dar mais uns anos de vida aquela torre de trinta metros, imponente, dona da falésia. Um monumento à esperança que já tinha salvo tantos marinheiros quantas as voltas completas da luz que lhe assenta no cume.

Era difícil dizer qual dos dois era mais velho. José pelo menos pintava a parede da torre todos os cinco anos renovando-lhe a face. Um favor que o farol jamais retribuiu. Ingrato. Mas determinado, como sempre, o velho faroleiro continuava a dar-lhe mimos. Hoje, era dia de olear o eixo da lâmpada. Funcionava bem, mas fazia uma chiadeira que o irritava.

Três litros de massa depois, aquele som agudo e repetitivo tinha ido para o fundo do mar. Agora sim. Desceu as escadas e sentou-se a consertar o rádio que, por atitude própria, tinha deixado de funcionar. A questão não era se voltaria a funcionar. Era apenas quando voltaria a funcionar. E hoje o dia era lento. Tempo de sobra.

A Maria ficou contente. Sabia que o José estava entretido no seu Mundo. Companheira de anos infinitos, estava habituada a longas noites à espera que o José descesse de lá de cima quando a luz finalmente se apagava ao nascer do dia. E não era por isso que deixava de estar lado a lado com ele durante o dia. Sentada na sua eterna cadeira junto à janela, contemplava o mar com um olhar que deixava a linha do horizonte para trás. Dona de uma paciência que cansava as ondas, Maria vivia para o José e para sonhar. Ele é a âncora que a prende à terra e o sonho desprende-a de tudo o que é terreno. Quando ela fechava os olhos, o José nunca sabia se ela estava a dar descanso ao corpo ou ao espírito. Não importava. Aquele rádio ia ser consertado hoje.

Lá fora o sol batia forte. Ainda. Os gatos estavam moles. Pachorrentos. Esticados ao comprido na esperança que aquela réstia de brisa lhes passasse a mão pelo pêlo. Talvez assim refrescassem. A Mariana tinha-lhes posto comida na malga há umas horas. Estava lá toda. Demasiada preguiça para comer. A única energia restante era para mexer a cauda e afastar aquela mosca que não os deixava em paz.

Comam filhos, senão não medram, dizia-lhes a Mariana. Como se gatos de sete quilos precisassem de medrar. Mas o amor tem razões que a razão desconhece. Enfermeira de profissão, estava habituada a tratar de tudo o que vivesse, gente incluída. Franzina, passava os dias entre a malga de comida dos gatos e o centro de saúde da terra. Ai senhora enfermeira, acuda-me. Eram sempre as mesmas velhas na sala de espera. Nada mais para fazer. Sem marido para tratar em casa, vinham para o centro de saúde em busca de atenção. E era o que levavam, por isso voltavam no dia a seguir. E a Mariana lá estaria.

Da mãe herdou a paciência, do pai a determinação. Costumava ir muitas vezes ao farol visitá-los. Não porque fosse perto, pouco mais de umas centenas de metros, mas porque se preocupava. Com tudo, e com eles. E a Maria e o José retribuíam. Levavam-na sempre à torre. Ao cimo mais alto da falésia. Dali podia avistar com a imaginação a terra onde o irmão trabalhava. O traquinas. O mais novo.

Mas quando o cansaço era muito e a imaginação não ajudava, piscava os olhos e estes focavam-se no fundo da falésia. Era sempre o mesmo pedaço de areia onde só se chegava por um caminho de cabras. Mais pequeno que um bote. Quase que se contavam os grãos de areia. E sempre a mesma silhueta. O Augusto, o irmão. O mais velho.

Passou mais dias naquele pedaço de Mundo de cana em riste do que há ondas no mar. Sempre sozinho. Uma personagem do Velho e o Mar, mas sem acção. A mesma determinação, porém. O próximo anzol é que vai ser. De cara crispada e olhar fixo nas ondas, parecia hipnotizar os peixes para morder. Com a bóia como companhia, passava horas a fio neste ritual. Nada mais interessava. Nada mais havia. As vezes que passou pelo farol contavam-se com menos dedos do que os Natais que passaram entretanto.

Não é a distância que faz a visita, é a necessidade. Se não é preciso, não se faz. Era assim que o Augusto pensava, talvez fruto de horas a olhar para a bóia. Aquela bóia que falava com ele e lhe dizia que o peixe estava pronto. Puxa agora. Este é grande. Agora, sim, é preciso.

Mas hoje era um dia especial. O traquinas vinha de longe. Não vinha muitas vezes, mas quando vinha era uma festa. O que fizeste? Por onde andaste? Tantas perguntas, tão pouco tempo. Aventureiro por natureza, tinha um sentido de responsabilidade igual ao de um dia de vento. De pouca dura. Mas vento suão. Quanto soprava, soprava forte e quente. Embarcava em viagens que de tão imaginárias pareciam reais. Um sonhador inconformado com as limitações terrenas. Por isso foi lá para fora.

E hoje regressava. Regressava de algures onde tinha estado uns tempos. Prestes a voltar para nenhures por mais uma temporada. Mas isso não interessa. Hoje é dia de festa. E foi por isso que a Mariana foi ao farol. Mas o seu olhar hoje parou na falésia antes de chegar ao horizonte. Gaivotas. Porquê tantas gaivotas em terra? Voem filhas, antes que os gatos vos apanhem. Mas elas não voaram. Quedaram-se à beira do precipício. Talvez o único lugar seguro para se estar.

Eram já quase cinco da tarde quando o vento começou a soprar mais forte. Por muito que fizesse, o João não conseguia aguentar as velas em posição. Onde é que se pôs o Sol? O céu de um cinzento carregado fazia aquelas ondas de cinco metros parecerem ainda mais assustadoras. Céu e mar de uma cor só. Mas desta vez as pinceladas eram cinzentas, não azuis. O veleiro abanava como uma casca de noz á solta num ribeiro. Pouco havia a fazer, a tempestade foi tão repentina que o mais experiente velejador teria vacilado. Nem Neptuno ficou para ver.

Pouco tempo havia para alguma coisa, quanto mais para reagir. Valeu o rádio. O rádio que hoje funcionava porque o José encontrou aquela resistência manhosa que teimava em cheirar a queimado. E foi pelo rádio que se aperceberam que algo não estava bem.

Não hoje. De todos os dias do ano, todos, hoje não. Hoje era dia de festa, pensava o José a caminho do cimo do farol. E fez-se luz. Repetitiva, rotativa. Luz. E não havia chiadeira. Ainda bem. Podia-se ouvir o rádio lá em baixo.

Ao ver a luz do farol e o cinzento cobrir a cor do céu, a Mariana pensou o pior. Não hoje. Hoje o traquinas está no mar. E as gaivotas não estão. De repente, tudo se fez mais claro que a luz do farol. Sem hesitar, saiu porta fora. Defeito de profissão quando se trabalha a salvar pessoas. Não se pensa. Age-se. Principalmente se estamos a falar do traquinas. Vamos a isso.

Já o sólido barco do faroleiro ia longe quando os gatos se aperceberam que a malga da comida estava vazia. Teria sido uma miadeira se os trovões não lhes abafassem as cordas vocais. Mas não adiantava. A Mariana já ia longe. No mar alto. Contra as ondas. O traquinas estava no mar.

Algumas horas depois, já não sabia se estava a delirar ou se aquela luz amarela no mar era verdadeira. Encharcada até aos ossos, mas de pé fincado na pequena proa daquele barco de esperança, a Mariana não desistia. Uma luz amarela e a piscar. Vamos ver.

É o traquinas. Anda barco, só mais uns metros. Agarra a luz, o colete. Agarra com todas as forças tudo o que vier à mão. Desta vez, Neptuno ajudou. Só assim Mariana conseguirá explicar as forças que teve para puxar aquele corpo meio morto para bordo do barco. Do veleiro, não havia vestígios. A esta hora seria refúgio de sereias nas calmas profundezas do mar. Uma dádiva do rei do tridente.

E agora? Para onde ir? Escuro como bréu, o céu continuava a reflectir no mar. As ondas, nem vê-las, apenas um abraço molhado e frio. Uma estranha forma de amor e ciúme onde o mar não nos quer deixar ir. E nos puxa possessivamente para o fundo.

Não hoje, pensava a Mariana. Hoje era dia de festa. Valeu-lhe uma luz forte e rotativa no horizonte. O farol. Qual noite de Reis, seguiu a luz até ao seu destino. Um destino abençoado por certo.

Ao chegar à praia não viu comoção. Não viu gente. A terra era pequena. A noite era má e injusta. Nem as ondas de rádio faziam os socorros chegar mais depressa. A estrada era a mesma, interminável, com ou sem rádio. A terra era de ninguém no meio de nenhures. Só se distinguia uma silhueta na praia contra a areia. A Maria. E uns quantos cobertores.

Corre, pensava o José. Tinha ficado na torre a garantir que aquela luz divina iria cumprir a sua missão mais uma vez. Mas agora já não era preciso. Até a resistência do rádio podia queimar outra vez. O traquinas já estava na praia. Corre.

Quando lá chegou, já não foi preciso muito mais para tirar o traquinas do barco. Neptuno tinha ajudado a Maria e a Mariana outra vez. As sereias devem ter ficado ciumentas. De pouco lhes valeu.

José carregou o corpo meio morto, ainda mais pesado com todos aqueles cobertores, de volta para o farol. Aos poucos o calor da lareira preparada pela Maria trouxe-o de volta. Tira-lhe os cobertores senão o rapaz abafa, disse o José. A Maria obedeceu, relutante. Mas a Mariana fica com o dela. Ainda tem frio. Está bem, retorquiu o faroleiro.

No dia seguinte, da tempestade não havia memória. São Pedro tinha desembaínhado a faca outra vez. Cortando os azuis e ajudado pelo sol, o dia estava magnífico. Hoje sim, era dia de festa.

Até o Augusto apareceu para almoçar. Trouxe uns quantos peixes e muita boa vontade. Da noite passada não se falou muito. Apenas um comentário. Da próxima vez, se não vires gaivotas, não te faças ao mar. A seca sabedoria de muitos anos de pesca a rematar a baínha dos acontecimentos. Era assim o Augusto.

Muitas saudades mortas depois, uns dias tinham passado. Estava na hora de voltar. O barco emprestado pelo José não era tão bonito quanto o veleiro. Mas pelo menos este não era das sereias. Era real e ia levar o João de volta. A algures, por uns tempos.

E assim foi, fez-se ao mar não poupando esforços para dizer adeus a todos os que ficaram na praia a ver. Até os gatos foram. Todos, menos o Augusto. Mas do seu pequeno promontório de areia ele assistiu à despedida também. Só não disse adeus, porque não é preciso. O João há-de voltar.

Umas horas depois, já a Maria estava de volta à sua cadeira. Da janela podia ver a linha do horizonte. O traquinas já estava do lado de lá. Onde o sonho dela estava.

Check-in

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